• soajoDo Soajo às brandas, 14 de maio 2016
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  • Estes últimos meses a falta de sol, a saudade do brilho matinal das gotículas deixadas pelo orvalho da noite e a ausência de uma caminhada estavam a sufocar-me. Tudo o que ouço é o som retimado da chuva, que hipnotiza toda a minha vontade. Sem dúvida que também quase já nem caibo na minha roupa, limito-me a comer e comer. Busco as previsões meteorológicas e fico desolado, novamente chuva. Aumenta a raiva e praguejo contra os céus. Irrito-me por tudo e por nada. Os dias vão passando, e mais uma vez aproxima-se um fim de semana onde está agendada uma caminhada, olho novamente o ecrã e fico ansioso. Será desta?
  • Por fim, o tão desejado sábado chegou. Nessa manhã o céu carregado de nódoas negras transpirava humidade. Era uma manhã diferente; a única coisa que queria ouvir, era o tagarelar dos caminheiros durante a caminhada. Era um bálsamo para a melancolia e ajuda a fortalece os laços de amizade com outras pessoas que pensam como nós.
  • Nesse sábado partimos para Minho, para a mais bela e verde zona do nosso país. Depois de sairmos para longe da confusão urbana, pela janela do autocarro percorro com o olhar as serras que se fundem no céu cinza pálido.
  • Chegamos a uma das mais típicas povoações portuguesas, de seu nome Soajo que fica perdida no coração do Minho. Encarrapitada numa das vertentes da serra da Peneda, que faz parte da área do Parque Nacional Peneda-Gerês.
  • O que tem de tão especial esta povoação do Soajo para nos ter chamado tanta atenção?
  • O Soajo tem um dos mais emblemáticos conjuntos de espigueiros do PNPG e do país. Trata-se de um conjunto de 24 espigueiros construídos em torno de uma eira comunitária, todos em pedra e assentes num afloramento de granito e datados dos séculos XVIII e XIX. Este conjunto está classificado pelo IGESPAR como Imóvel de Interesse Público desde 1983. Hoje, permanecem como símbolo do espírito comunitário do Soajo. Erguidos na matéria-prima originária da região - o granito -, os espigueiros tipificam-se de igual modo pelo corpo baixo e alongado que apresentam. É o grande atrativo para a maioria de quem visita o Soajo. Vou retificar Vila do Soajo. Porque Soajo é também o nome que se dá a serra do Soajo (ou Suajo) é a sexta maior elevação de Portugal Continental, com 1416 m de altitude. Situa-se nos concelhos de Arcos de Valdevez, Melgaço e Monção. Esta serra faz parte do Parque Nacional Peneda Gerês.
  • Para nós este local é o ponto de partido para a nossa aventura pelas terras do Soajo. O nosso desejo era forte e firme, e nem as ameaças de chuva nos demoveram e partirmos a descoberta de mais um pedacinho do geres, desta feita percorrer os caminhos do Soajo às Brandas do Soajo.
  • Este trilho proporcionou não só um contacto direto com a natureza, mas também, o despertar do sentimento de pertença à comunidade e o estímulo da vontade do saber. É um percurso que sem dúvida vale a pena fazer. Esse foi o meu veredicto no final. Levou-nos a descobrir povoações, um rio e pessoas. Locais perdidos que se unem aos mais belos cenários, e que os tornam sublimes. São locais simples que ficaram esquecidos durante anos, do olhar da maioria das pessoas.
  • A água é um elemento permanente, concedendo uma beleza e frescura natural ao percurso e fonte de vida. Um percurso místico, onde o Homem e a Natureza se adaptaram, requintando este território de paisagem e património único.
  • Naquele sábado, seguimos as pisadas dos brandeiros, usando os caminhos ancestrais que de geração em geração percorrem para pôr as vacas nas pastagens nos altos das montanhas. A estes locais chamam brandas. Quando por meados de maio, começa o tempo aquecer, inicia-se a passagem dos animais das zonas baixas para as brandas nas zonas altas, uma espécie de transumância dos gados e dos “brandeiros”, os homens que acompanham os animais e que com eles permanecerão durante toda a época quente lá em cima.
  • Durante os cerca de quatro meses permanecem na serra, deambulando de branda para branda, refugiando-se e dormindo nos respetivos “cortelhos”. Construções muito rudes e acanhadas, construídas com o único material disponível nas imediações das brandas: blocos e lajes de granito. Para evitar repetidas reparações e permitir uma longa longevidade a estes abrigos, na sua edificação não é utilizado nenhum material perecível, como o colmo ou a madeira. E por isso, até a cobertura é feita em pedra, através do tradicional sistema da “falsa cúpula”.
  • Deixamos para trás as pesadas pedras que cobrem o chão que pisamos e embrenhamo-nos nos lamacentos carreiros que se afastam da povoação. Caminhos gastos pelo tempo, ladeados por muros de pedra solta, coberta por musgo felpudo carregado de gotículas de água. É um belo cenário. A brisa fresca e húmida vai humedecendo as minhas faces e ao longe ouço o gorgolhar da água a percorrer o espaço sulcado por anos de intensa atividade.
  • Descemos por carreiro Impraticável na direção do gorgolhar que ouvíamos. Ao fundo O rio esfrega-se com intimidade nas pedras polidas pelo tempo, e segue o seu percurso. Aqui, o silêncio é privilégio de poucos, os que cá chegaram.
  • Escondido há um moinho, que o tempo deixou ao abandono. Ao longe tinha ares de cabana miserável roída pelo tempo. A habitação havia crescido com os líquenes ou vice-versa. A porta dir-se-ia ser o objeto mais fácil de descrever, nomeadamente por não existir. Para não desfigurar a paisagem, cobriu-se com um manto verde. O conjunto dá mistério e graciosidade a paisagem.
  • Ao longo dos caminhos o verde intenso e fechado chora. Os fetos e os musgos tomam o lugar das pedras nuas que as envolvem em carícias secretas. O piso fica macio e as águas correm livremente por entre as pedras esculpidas pelo tempo, toda a envolvente ganha cor com a nossa presença. O silêncio deixou de percorrer cada espaço e no chão pedregoso e lamacento jazem as pegadas até que um vento suave as cubra de poeira.
  • Devagar, deixamo-nos engolir pela paisagem, caminhamos, pé ante pé, em caminhos onde se conquista metro a metro. As vozes, os risos e os ruídos trazem vida e fazem-me lembrar o magnífico grupo que me rodeia. Com o passar das horas, adensava-se a bruma que pairava sobre os cumes em nosso redor. O peso das mochilas e a quantidade de proteções, deixam-nos incómodos. A pachorrenta chuva continua.
  • A beleza natural do Soajo tem outros atrativos com um tempo menos húmido, deste modo é diferente do habitual. Mais um encanto da solidão minhota perdida no verde. Passo a passo, vamo-nos aproximando daquelas que davam nome ao trilho: As brandas. O silêncio era corrompido pelo gotejar da água constante nas proteções sintéticas. Nunca há verdadeiro silêncio na natureza, mas os sons são tão diferentes dos citadinos que vale a pena ouvi-los e tentar identificá-los. Além disso, é surpreendente descobrir o som do silêncio. Não é necessário ter uma imaginação fértil, para descobrir os imensos segredos que a natureza esconde. A paisagem é como um livro que se abre e, no desfolhar das páginas, encontramos um mundo diferente e novo ao mesmo tempo.
  • Depois de passarmos pelas brandas e regressarmos a vila do Soajo encontramo-la anormalmente sossegada: as ruas estavam quase desertas, as casas fechadas, todo o comércio estava numa paralisia quase total. Não era de estranhar, uma vez que o frio e a humidade afasta os turistas.
  • Não parecia um dia de primavera, antes pelo contrário, mais parecia que estávamos em pleno inverno ou num daqueles dias de outono que convida ao conforto do lar e ao som do crepitar da lareira.
  • Mochila as costas e vontade para percorrer o trilho, deixa de ser importante a dureza do caminho. Não importa o peso da mochila. Restará sempre um peso, mas nada impede a sensação de liberdade. São experiências gratificantes e enriquecedoras para qualquer um que se queira habilitar, a conhecer. Estes são aspetos que a natureza tem para nos oferecer. Quando conjugados pelo mesmo princípio, fazem maravilhas. É exatamente isso que procuramos.
  • Caminhar é um dos atos mais naturais do Homem, não estamos preparados para correr.

Agostinho Santos

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