• PiodaoRibeira de Piodão
  • Piodão, a aldeia nascida da pedra.
  • Ouvi-a falar, falavam, ouço falar, e agora falo desta aldeia, que cresce na serra do Açor. Da mesma maneira que eu desenvolvi o desejo de conhecer este pequeno grande paraíso, a aldeia que cresce, encravada, vertente acima. Ainda há pouco tempo o conhecimento in loco deste local era privilégio de poucos, hoje já é também um privilégio meu. Hoje, o turismo é uma forma de prender estas gentes por aqui, e mal os raios de sol aquecem o ar, a afluência de turistas aumenta contrastando com os visitantes de inverno. Não menos bonito deve ser o espetáculo no inverno. Onde cresce a cor desbotada, nas pedras frias cobertas de neve que é salpicada por azul embutido no escuro, perpetuado pelo espaço e o tempo.
  • Antes mesmo de afundar os meus passos na poeira dos caminhos piodenses, naquele sábado 24 de maio do ano da graça de 2014, apraz-me falar da sua história escrita e reescrita nos manuais deixados pelo tempo. Sem conhecer ao vivo a aldeia, e lendo o que se escreve nos roteiros turísticos sobre Piodão, fico pensando até que ponto é verdade a frase: Experimente a simpatia da gente que vive em casinhas de bonecas amontoadas, numa pequena encosta serrana, pintalgadas com cores da terra e do céu. É fantástica esta frase. Nos dias de hoje Piodão, parece perdida no tempo, apesar de ter todo o conforto, mas, soube manter os costumes, as tradições e as características originais, típicas de montanha. A vida dos habitantes melhora significativamente com a chegada da luz, e a construção das primeiras estradas alcatroadas. É por essas estradas que hoje cruzamos um mar de ondas verdes que se afundam a nossa frente, para de repente elevar-se aos nossos pés. Pintalgados por matizes verdes que se fundem no céu ou que se escondem na neblina matinal. De longe em longe rompe da terra um escarpado e figurativo amontoado de pedras pontiagudas, que eleva a imaginação ao seu auge, para desfazer-se em urze e ervas aromáticas. Era neste vai e vem de pensamentos que a minha imaginação baloiçava. Aí conheci o Sr. “Xisto” que vive em Piodão a tantos anos como a sua idade, e que diz não querer deixar a sua terra, por nada deste mundo. Acabado e enrugado como a paisagem que o cerca, homem frio e pacifista, mas que se deixa levar pelo calor das suas historias. Sentado na soleira do prédio, que se prolongava para além do azul que se abria na parede e ladeado por canteiros de plantas que não chegavam a atenuar a aridez do espaço circundante. O edifício combinava a austeridade arquitetónica, com a simplicidade. O castanho ocre das paredes era apenas quebrado por janelas com caixilhos brancos e azuis. Do seu local avistava o mar de alcatrão do parque de estacionamento e o vai e vem de turistas. Desenhava postais ilustrados na sua imaginação, uma forma de iludir a passagem do tempo, tanto para si como para os restantes habitantes nascidos em tempos idos. Na mão tremula e transparente, segurava o resto de um ramo que em tempos fora viçoso e produtivo, hoje, não, passa de um suporte da sua carga assimétrica, produzindo um coxeio próprio da idade. Faz questão para que fique bem vivo, que este coxeio é fruto do deflagrar de uma mina na guerra colonial. Recorda com tremura esse ano de 1963, junto ao rio Corubal em Tite, quando as forças do PAIGC, de Amílcar Cabral, num ataque de guerrilha os emboscaram. Agitando o cachimbo apagado, fruto de um turista médico de Coimbra, que na sua passagem pela aldeia, durante um ataque de tosse o sentenciou de uma morte rápida se não parasse de fumar. Hoje mantêm esse cachimbo apagado como se fizesse parte do seu corpo.
  • Atentos ao pestanejar trémulo e embalados pelo cantarolar das palavras que saiam da sua boca, foi contando aquilo que podia contar sobre a sua terra amada.
  • - Há muitos anos atrás, falava calmamente o Sr. Xisto, lá no cimo da colina, existia um lugar chamado “Casal de Piodam”. O meu pai e já o pai do meu e já antes do pai do meu avô se falavam que um dia, uma “praga de formigas” obrigou a povoação a abandonar o local. Somente, ficou um nome: Piódão Velho. Os poucos habitantes refugiaram-se no fundo da encosta. Aqui estamos neste recatado local onde em tempos idos nasceram uma nova aldeia: o Piódão Novo.
  • O Sr. Xisto, ajeitava o manto de burel que transportava sobre o ombro esquerdo, deixando a mostra a sua camisa branca de linho já puído, que expunha como se tivesse saído da lavandaria de propósito para aquele momento.
  •                 - Não tem calor com esse manto?
  • O Sorriso cândido permanentemente afivelado numa face de linhas vincadas pelo tempo, e muito subtilmente dizia:
  •                 - Não. O que tira o frio também tira o calor. Nós aqui os serranos como vocês dizem, tivemos que escolher de entre duas, uma: ou viver os rigores do clima ou ter uma natureza bela e impar. Quem optou pelo conforto de uma vida facilitada, foi embora para outras paragens, outros como eu escolheram ficar e aqui deixarem o seu corpo para fortalecer as terras para as gerações vindouras. Hoje estão aqui, porque a beleza do lugar assim vos convidou. Fico contentes por cá estarem. Mas, digo-te era bem dura a vida dos piodenses. A Natureza não cedia facilmente. Tivemos de desbravar montanhas, elevar socalcos fazer escadarias que os unissem e construir casas, com lousa, xisto, argila e madeira de castanheiro. Quando fechar estes meus olhos, sinto que cumpri o meu dever, para com Deus e a pátria.
  • As palavras faltaram-me naquele momento, e a muito custo consegui reavivar a conversa, mas foi o Sr. Xisto que a reatou perguntando-me:
  •                 - Diga-me de onde vocês vêm?
  • É uma pergunta fácil para responder, mas o meu amigo certamente que não conhecerá, mas vou-lhes tentar contar a nossa história com o mesmo gosto que nos contou a sua.
  •                 - Nós vimos um pouco de varias partes, a nossa concentração foi em Cucujães, local de onde saímos às 8 horas da manhã para estarmos aqui agora a esta hora. Estamos aqui 54 caminhantes que hoje decidiram fazer uma caminhada de Piodão até a Foz d’Égua.
  •                 - Vocês não têm locais lá na vossa terra mais perto para caminhar?
  •                 - É claro que sim. O nosso grupo que se chama ANDAR, gosta de conhecer, aprender e ao mesmo tempo tornar-se saudável. Deste modo ficamos a conhecer Piodão, a Foz d’Égua e outras terras por onde passarmos.
  •                 - Agora me lembro de uma caminhada que ficou celebre aqui na aldeia. Os antigos antes do avô do meu avô e segundo os ditos populares, a primeira capela foram construídos com base nas poupanças dos aldeões e no seu suor. Um deles caminhou durante dois dias para conseguir a autorização do Bispo de Coimbra para se fazer tal obra. Hoje se vai de carro e em poucas horas fica tudo resolvido ou até mesmo usa-se o telefone, coisa que não havia no meu tempo de infância. Nem a escola podia ir. Só os mais abastados é que podiam mandar os filhos estudarem, os outros faziam parte da força do trabalho. Nos trabalhos e no transporte dos produtos agrícolas, tinham o macho, (um animal, fruto do cruzamento do cavalo e do burro). Os tempos são outros. A minha filha foi viver para Coimbra, já lá vão uns largos anos, os meus netos quando vem cá visitar-me chamam pasmaceira a isto, vai-se lá saber porquê, e insistem em que eu vá viver com eles lá para a cidade. Não, isso era tirar-me a vida. Gosto disto e aqui a terra há de comer-me.
  •                 - Nós vamos agora para Foz d’Égua, parece ser muito bonito aquele lugar. Vamos percorrer os caminhos que os seus antepassados criaram e calcorrearam durante muitos séculos.
  •                 - Muitos desses muros que ladeiam o caminho, com as pedras de xisto emparelhadas passaram pelas minhas mãos, a troco de um pouco de toucinho e um pedaço de broa de milho, que mataram a fome a mim e os meus irmãos. Era uma vida difícil e dura, de tal forma que por detrás de cada pedra erguida se esconde uma história, muitas vezes escrita com sangue.
  • Despedimentos do Sr. Xisto por agora e prometemos quando voltássemos continuaríamos a nossa amistosa conversa.
  • Percorremos serpenteando as estreitas ruas da aldeia, que é freguesia, até desaguar na praia fluvial de Piodão. É interessante esta praia, não é como as que estamos familiarizados, mas souberam muito bem como tirar partido da natureza, sobretudo da água pura que desce do alto da serra, transportada pela ribeira do Piodão. O aprisionamento das águas, é muito importante no verão, visto a paisagem ser demasiado seca e infernal no período do estio. É uma mais-valia para o acolhimento dos turistas e sua fixação. A construção, em xisto como manda as regras espalha-se pelo recinto para dar apoio ao turismo nos dias em que a afluência assim o exige.
  • Estávamos de passagem, sem antes deixar de fotografar, pontes e recantos cobertos de diversos tons de ocre que dão cor ao xisto da região. Para trás ficam as casas que descem de socalco em socalco, para se alargarem na vasta praça que constitui o centro, a sala de visitas do Piódão. Encaminhamos os nossos passos para longe da pacata aldeia, que conjuga a beleza arquitetónica com a simplicidade das suas casas. O acesso a dita praia faz-se por uma escadaria também esta em xisto e lajeada por placas de ardósia negra como os telhados das casas, os muros em aparelho de xisto. Em resumo era tudo muito xistoso. Uma ponte em arco de volta prefeita transporta-nos para a outra margem, uma obra graciosa e bela. Já afastados mais da civilização deparamo-nos com um ambiente que em tempos foi muito concorrido, uma vez que há imensos socalcos trabalhados com muros de sustentação de xisto, escadarias e alguns ainda vinculam a presença humana. A geomorfologia do território decerto dificultou a vida dos seus habitantes. Para praticar a agricultora, foi necessário adaptar o terreno, criar condições para a ocupação de subsistência. Construíram-se muros, os cômoros (um regionalismo parede de suporte de terreno em socalco) e cultivou-se em socalcos. Desta forma engenhosa se ganhou terreno as íngremes encostas da ribeira do Piodão. A vida da população serrana foi sempre muito dura. Os terrenos íngremes não permitiam a ajuda de animais nos trabalhos agrícolas. Os caminhos tortuosos, escaleiras estreitas esculpidas na rocha, ou feita pedra sobre pedra eram um perigo constante para quem delas se servia. As quedas e maus jeitos eram inevitáveis. O trabalho árduo à custa dos próprios braços, grandes carregamentos à cabeça e às costas, fez com que músculos e ossos tenham sido, desde sempre, um grande problema que condicionava a saúde dos habitantes da serra. Quantas vidas se perderam ou quantos acidentes se deram nestas labutas? Conhecendo hoje os caminhos para chegar à aldeia, não encontro socorro possível ou imediato naqueles tempos idos. Como faziam ou quem os socorria? Agora entra as tradições seculares destes povos isolados. Para além das rezas e do barbeiro, o endireita era também uma ajuda nos tratamentos. A quem dói um dente, vai à casa do barbeiro. (Ditado Popular). O barbeiro teve um papel preponderante na saúde dos povos serranos que a ele recorriam frequentemente. Para além de cortar cabelos e fazer as barbas, arrancava dentes, fazia sangrias aplicando sanguessugas ou ventosas, escalda-pés, clisteres e outros tratamentos. Há muitos anos atrás, o seu trabalho chegou mesmo a ser reconhecido, ocupando o último lugar na hierarquia hospitalar. O endireita era uma pessoa que possuía um vasto conhecimento dos ossos do corpo humano e que conseguia muitas vezes tratar ossos fraturados, entorses, vértebras deslocadas, ou músculos torcidos. Esta sabedoria era, muitas vezes, transmitida de pais para filhos. O que é certo é que quando as pessoas se vêm aflitas, recorrem a tudo. Pouco esclarecidos, viviam na crença dos mitos medievais que foram passando de geração em geração. Não conseguindo explicação para os problemas que lhes apareciam, tentavam encontrar respostas no sobrenatural. Quando eram acometidos de algumas doenças que não conseguiam tratar pelos processos que vulgarmente utilizavam, acreditavam serem vítimas de almas penadas, pragas, ou mau-olhado lançado por alguém. Para ajudar nestas superstições, em quase todas as aldeias havia uma pessoa que diziam ter dotes sobrenaturais, a quem recorriam todos aqueles que se sentiam "atacados". Uns chamavam-lhe a benta, mas geralmente era conhecida por bruxa. Esta ouvia as pessoas e dava indicações da forma como deviam proceder para se livrarem dos seus problemas. Normalmente a solução era ouvir Missas, queimar azeite, ou velas, fazer defumadouros, tomar purgas. Quando a benta dava indicações sobre quem lançara o mal, as pessoas cortavam relações com aqueles de quem desconfiavam e arranjavam-se grandes zangas envolvendo famílias inteiras. Estou certo que alguma destas casas, já afastadas da aldeia, pudesse ser alguma da dita benta. Das ancestrais crenças populares muito havia a escrever, pois o nosso país é fértil nesta matéria, mas o meu conhecimento sobre o assunto é parco. A região do Açor não foge à regra do país e, antes de recorrer ao barbeiro ou ao médico (quando o doente era abastado), recorria-se às rezas.
  • Quando alguém tinha algum problema de ossos ou dava algum mau jeito, arranjava-se um púcaro e uma bacia com água, um trapo, uma agulha e linha. Com a linha enfiada na agulha, davam-se pontos no trapo enquanto se repetia três vezes a seguinte reza:
  •                 - Que cozo?
  •                 - Carne quebrada nervo torto.
  •                 - Por isso mesmo é que te coso, pelo poder de Deus e da Virgem Maria em louvor de milagres, o Santo António e o S. Gonçalo em louvor de S. Silvestre façam coisa que preste, Nosso Senhor Jesus Cristo seja o nosso Divino Mestre. Pai Nosso, Avé Maria, Glória, Salvé Rainha.
  • Para a erisipela: Para se tratar utilizava-se um terço, uma faca e um ramo de figueira que se molhava em azeite e se aplicava na parte doente fazendo cruz e rezando:
  • Nossa Senhora subiu à Serra e encontrou a Erisipela e perguntou-lhe:
  •                 - Para onde vais negra vermelhorra?
  •                 - Eu não sou negra e vermelhorra, eu sou branca e coradinha, vou para a terra, comer carne, chupar sangue, moer osso e dar face à terra fria.
  • Nossa Senhora respondeu-lhe:
  •                 - Pois eu digo-te que não vais à terra comer carne, chupar sangue, moer osso e dar face à terra fria. Porque eu com estas continhas do terço haverei de te atalhar com esta faca te cortarei, com estes ramos de figueira te queimarei e ao mar te deitarei, onde não sintas sinos a tocar e galos a cantar.
  • (Por fim estas palavras eram repetidas três vezes e rezava-se uma Salve Rainha).
  • Estas, e muitas outras rezas faziam parte das tradições da população serrana. Como dizia Colbert: A grandeza de um país não depende da extensão de seu território, mas do caráter do seu povo.
  • Nas aldeias, situadas numa zona montanhosa, longe de tudo e de todas as pessoas acreditavam que as rezas e orações os podiam proteger, dos mais diversos males. Crentes no sobrenatural acreditavam em bruxas, lobisomens e almas penadas, fruto das histórias que passavam de pais para filhos e que ouviam contar à noite, ao serão. De entre as crenças destaco algumas:
  •                 - Se numa família nascessem sete mulheres, sem que nascesse um homem pelo meio dizia-se que a última ou a primeira era bruxa. Para que isso não acontecesse, a mais velha deveria batizar a mais nova.
  •                 - Outra crença era a existência de lobisomens, que era o nome dado a uma criatura que em noites de lua cheia se transformava em lobo e vagueava na procura de alguém que pudesse atacar. Por essa razão se dizia que não era aconselhável sair nessas noites. Dizia-se também, que não se devia brincar com a própria sombra, porque podia provocar doenças; não se deviam contar estrelas porque fazia aparecer verrugas; quando apareciam borboletas em volta da luz, dizia-se que eram bruxas; no caso de se matar algum gato seguir-se-iam sete anos de azar na vida...Atualmente estes tratamentos caíram em desuso, mas ainda há quem os utilize, antes de recorrer ao médico. Shakeaspere diz: existem mais mistérios entre o céu e a terra do que a nossa pobre razão pode imaginar.
  • Com tudo isto, me perdi nas encostas da serra do Açor. Seguindo a minha viagem até a Foz d’Égua. Os moinhos tiveram uma grande importância no quotidiano da população do Piodão, trabalhando noite e dia a moer os cereais. No entanto, atualmente encontram-se abandonados e alguns em ruínas. É provável que o desejo de diversificação da produção de cereais levasse os habitantes do Piódão a se dispersarem pelo vale, dando origem a novos focos populacionais. Embora não se saiba muito bem que motivos levaram essa povoação ao abandono do velho Piodão, devido ao calor, sofria com as investidas das formigas que devoravam o mel, uma das suas principais riquezas e que, por outro lado, não dispunha de água suficiente para cobrir as necessidades de uma população em expansão. Nas partes baixas essa água que é tão necessária a vida, estava disponível. Abrigada no coração da Serra do Açor, une-se com a natureza. Foz d’Égua é possível que tenha sido um desses locais, dado haver melhores terrenos para cultivo. Ao longo dos tempos, as populações foram criando condições para a subsistência, conquistando à serra cada leira, cultivada em socalcos. E assim viveram durante séculos do mel, azeite, queijo, centeio e milho. A pastorícia era feita pelo membro mais novo da família, com 7 ou 8 anos de idade, que ia para a serra até ao pôr-do-sol, enquanto o resto da família se encarregava da agricultura.
  • Em Foz d’Égua encontramos a confluência das ribeiras de Chãs com a do Piódão. Existe ali uma praia fluvial, local que serviu de sala para o nosso almoço. Espalhados pelas margens da praia fluvial, degustamos o nosso manjar, previamente preparado. Findo este pausa, partimos a descoberta deste lugar paradisíaco. Belo, sem dúvida alguma. Gente abastada tem dado o seu bom gosto ao espaço, povoando de pontes, ricamente elaboradas, ou suspensas com engenho e arte. Por ser um terreno muito íngreme as casas apresentam uma disposição em anfiteatro, subindo a encosta, adaptou-se a aldeia ao terreno. Assim, as ruas são estreitas e pequenas, contornando os limites da Serra, circundando a encosta e estruturando o núcleo. No cimo desta encosta, muito recente foi criado um santuário com os materiais de construção que a serra oferece: xisto e madeira. Muito bem conseguido, e a minha primeira impressão fez-me lembrar Antoni Gaudi o arquiteto catalão com as suas famosas paredes curvas. As paredes são cobertas pelo tradicional xisto.
  • Foz d’Égua não tem o mesmo impacto que Piodão possui para o turismo, mas com o tempo pode essa tendência se inverter e ambas façam parte do roteiro turístico da região. Eu pessoalmente gostei. É admirável a força de vontade do particular que tem investido neste paraíso.
  • Olhando do alto deste monte, vê-se ao fundo a piscina em tons de turquesa, um convite a um mergulho, neste dia quente e luminoso. Mas fica para outra altura, uma vez que não estava preparado para isso. Para tirar estes pensamentos fizemo-nos de novo ao caminho, de regresso a “aldeia presépio” assim batizada. Ao longo do caminho a flora é em grande parte constituída por castanheiros, oliveiras, pinheiros, urzes e giestas. A fauna que na sua maioria é difícil de ver compõe-se, sobretudo, de coelhos, lebres, mais difícil ainda de avistar são os javalis, raposas, doninhas, fuinhas. No ar também, é possível avistar-se águias, açores, corvos, gaios e perdizes.
  • Com o aproximar da aldeia, sente-se a grandeza da paisagem. As referências a Piódão ao longo dos séculos referem quase sempre o local como refúgio e isolamento do resto do mundo. Diz o povo que Piódão vem de “pior do mundo" Isso sente-se quando nos aproximamos de Piodão e a aldeia cresce pela encosta e nada mais em redor. É muito provável que neste povo isolado do mundo existisse uma religiosidade muito forte.
  • Aproximamo-nos a passos largos da aldeia, já o cemitério marcava a sua presença na paisagem, quando a primeira casa surge num estilo moderno, muito bem conseguido e embutido no conjunto arquitetónico circundante. Com o passar dos anos, os tempos difíceis que a população viveu foram amenizados. Hoje há uma geração que tenta inverter a saída da sua população, fixando-se e construindo aqui. A integração no projeto das aldeias históricas de Portugal salvaguardou o seu conjunto urbanístico (todas as casas em cimento e telha estão ou serão convertidas em casas com paredes de xisto e telhados de lousa), é deste modo que as novas construções respeitem estes princípios.
  • Não muito longe do centro da aldeia e na extremidade do aglomerado urbano, existe a “casa da padaria”, nome curioso, que tivemos intensão em investigar. Entramos, percorremos o espaço que hoje está convertido em alojamento local. A antiga padaria, ainda mantém o forno e alguns dos apetrechos originais na sua decoração. Depois de uma amena cavaqueira com a dona, uma lisboeta que se apaixonou pelos odores da serra e aqui estabeleceu o repouso dos seus últimos dias. A típica casa de Piodão com as paredes de xisto o telhado de lousa e a sua característica porta azul celeste. Sobre a porta uma serie de cruzes preenchem a decoração. Qual o significado? Uma pergunta pertinente que surge. Amavelmente a senhora disponibilizou-se a contar esta tradição.
  •                 - É uma das muitas tradições que ainda se mantêm nesta aldeia. As cruzes por cima das portas da aldeia são colocadas para afastar a trovoada. No domingo de Ramos os fiéis levam um ramo, composto de louro, oliveira, murta e alecrim para benzer e, nas noites de tempestade, fazem com ele uma cruz que é posta em cima das brasas da lareira ou na porta principal, invocando assim a proteção de Santa Bárbara para afastar a trovoada. Há ainda a salientar, nos dias de trovoada uma pequena prece, invocada contra as trovoadas, com a seguinte oração:
  • - Santa Bárbara bendita,
  • - Que nos Céus estais escrita,
  • - Com pena e água benta
  • - Livrai-nos desta tormenta.
  • Nos momentos de grande aflição o povo recorre a todo o tipo de preces e superstições. Não esquecendo a fé crista que mistura com os cultos pagãos.
  • A senhora da “casa da Padaria” continuava nos contando mais tradições da aldeia:
  •                 - Em quase todas as aldeias da Serra do Açor, na quinta-feira de Ascensão, conhecida como o Dia da Espiga, era tradição as pessoas irem apanhar um ramo de espigas de centeio, ramo de oliveira, alecrim e flores silvestres, com o objetivo de alcançar a bênção de Deus para os campos, para que houvesse pão, azeite e saúde durante o ano.
  • Foi com tristeza que tivemos de nos despedir da senhora, mas, agradecidos pelo seu saber. O restante grupo já se encontrava no grande pátio de visitas da aldeia, em frente a igreja. E era para lá que nos dirigiríamos. Eu digo, dirigíamos, porque não foi isso que aconteceu. Já muito próximo, do local, uma placa indicava a capela de S. Pedro, não se pensa duas vezes, e desviamo-nos pelas íngremes calcadas cobertas de degraus a procura da dita capela. O pequeno pátio em frente da mesma era quase parte integrante das casa que o rodeavam e a capela um pequeno espaço de culto simples e minimamente acolhedor. Uma vez mais as pequenas vielas cobertas de xisto, serpenteando por entre paredes que terminavam em telhados que eram a extensão dos pátios. A cada passo a igreja ficava maior e em alguns passos mais estávamos no seu adro.
  • Uma figura já nossa conhecida, dá um imenso sorriso quando surgimos a sua frente: o Sr. Xisto. Mantinha-se no mesmo local onde o tínhamos deixado, horas antes.
  •                 - Então já foram a Foz d’Égua? Quando eu tinha a vossa idade eu também calcorreava a serra em três tempos. Foi pastor, trabalhei no carvão e no minério, até ao dia em que a aldeia viveu um sobressalto, quando apareceu aqui a guarda a cavalo convocando os jovens para a tropa. Também foram poucas as vezes que tinha saído de cá a não ser até a Panasqueira. Os de cá viveram, durante muitos anos, isolados desde que nasceram até morrerem. Muito poucos só de cá saíram para irem à feira ou a alguma romaria nas redondezas. As notícias chegavam apenas pelos almocreves que atravessavam as serras, ou quando algum dos seus habitantes mais destemidos migrava para Lisboa e vinha de visita à terra. Era uma pobreza total. Estávamos ansiosos que as caravanas que seguiam para Covilhã vindas de Coimbra, carregadas de peixe fresco e sal, chegassem. Para podermos vender o acame, o queijo e os lanifícios que produzíamos. Éramos felizes a nossa maneira. Hoje vocês têm tudo.
  •                 - É verdade, mas, andamos sempre a procura de alguma coisa nova.
  •                 - Os tempos são outros. No passado ao domingo nenhum habitante da freguesia faltava á missa, nem as atividades diárias como a rega do milho e a pastorícia os impediam dos rituais diários, como rezar no final das refeições, o terço ao serão e o pedido de bênção aos pais antes de deitar. Hoje vejo pelos meus netos que já nem respeitam os pais, muito menos o Avô. As tradições caíram em desuso. Ainda me lembro, no Natal a fogueira era muito importante e indispensável. Era à sua volta que se reuniam todos, levando troncos de oliveira para arderem na fogueira e o que restava, o chamado “tição do Natal’, voltavam a levar para casa para acenderem em noites de trovoada. Nesta noite de Natal comiam-se os bolos da fogueira fritos em azeite no caldeiro de cobre pendurado sobre a fogueira da lareira. Na véspera de Ano Novo voltavam a acender a fogueira com os restantes cepos que sobravam do Natal. No dia seguinte após a missa, os mais jovens iam de porta em porta cantar as Janeiras, tradição que já se perdeu. Os jovens levavam um fargoeiro para transportar os enchidos que iam recebendo. O dia de Reis tinha um grande significado religioso, era o Dia Santo de Guarda, à semelhança do domingo em que ninguém trabalhava.
  • Para os crentes Deus está no princípio das coisas. Para os cientistas no final de toda a reflexão. (Max Planc)
  • O Sr. Xisto continuava olhando para nada, recordava um pouco mais do seu tempo ido.
  •                 - A minha filha está em Coimbra, e dois dos meus filhos foram para Lisboa. Até aos anos 60, em Piódão ainda havia um crescimento da população, a partir dai, caiu a pique. Quando eu cheguei mutilado do ultramar, já nada era como eu conheci. Em poucos anos a freguesia quase que desapareceu. Os jovens fugiram daqui e os velhos, já nada esperam. Foi quase tudo para Lisboa ou para o Brasil. Com o fecho das minas da Panasqueira isto morreu. O trabalho escasseou e o acesso ao emprego era difícil e sem a existência de relações de parentesco, amizade ou vizinhança, dificultava mais ainda. A desertificação destas zonas, afeta praticamente todos. Os mais jovens emigraram para o estrangeiro ou para as cidades a procura de melhores condições de vida, regressam cá, sobretudo, durante as épocas festivas para reviver o passado e se reencontrarem com os seus amigos e familiares.
  •                 - Vêm matar saudades da terra e procurar o sossego.
  •                 - Muitos deles vêm cá para comerem aquilo que não encontra na cidade. A chanfana, o cabrito assado, a sopa serraria; o caldo da panela; as migas de bacalhau; a açorda, nós tínhamos muito bom gosto. Hoje vendem ali em baixo, coisas que dizem ser cá, mas são feitas sabe-se aonde. Como tenho saudades de comer um pedaço de presunto serrano criado cá em casa e um bom naco de broa de milho. Mas, os meus dentes já não são o que eram. Ainda há pessoas de outras aldeias que vem cá a procura do bucho de porco recheado e os maranhos. Isso sim são coisas cá da terra. No fim uma boa tigelada à moda do Piodão, acompanhado pelos bolos do forno, bolos da fogueira e os biscoitos de azeite. Para terminar uma copada da aguardente típica desta aldeia: a aguardente de mel e de medronho.
  •                 - Com tanto comer ainda lhe dá qualquer coisa. Não tem medo de se sentir doente?
  •                 - Eu preparo uma infusão de ervas silvestre, acompanhadas de rezas herdadas do tempo do avô do meu avô e isso passa.
  •                 - Aqui é assim que as coisas se passam?
  •                 - Bem, já não é tanto, só os mais velhos é utilizam as rezas ou os responsos. Se eu pressinto que sou vítima de mau-olhado ou mal de inveja, ponho a porta de casa, um vaso com arruda. Até afasta os cães e os gatos. Para apaziguar as almas do Purgatório usávamos as “alminhas”. Por toda a serra do Açor, à beira das estradas, nas encruzilhadas dos caminhos, nas pontes, ou na frontaria das casas, em vários locais das povoações, existem essas alminhas. Estes monumentos de culto aos mortos lembravam a quem por eles passa, da necessidade de rezarem pelas almas dos defuntos que vagueiam expiando os seus pecados no Purgatório, para ajudar a alcançar a paz eterna. Era normal deixarem velas acesas ou flores, em especial coincidindo com datas relacionadas com os defuntos. Vai-se perdendo no tempo. As alminhas têm vindo a desaparecer quer por desleixo do homem, ou por não resistirem aos estragos provocados pelo tempo. Eram outros tempos, vivia-se numa miséria e não havia que comer mesmo que tivéssemos alguns reis na jaqueta.
  •                 - Esses tempos já se foram. O Sr. Xisto quer vir lanchar connosco?
  •                 - Estou agradecido. Não sou pessoa de andar nessas comezainas. Quero continuar aqui no meu espaço, desenhando mentalmente estes momentos que registo com prazer na minha memória. Façam boa viagem de regresso ao vosso mundo.
  • Despedimo-nos calorosamente do Sr. Xisto e atacamos uma das esplanadas existentes em Piodão. A sede teimava sem secar a garganta e havia necessidade de a empurrar para baixo e foi isso que fiz, antes de regressar ao autocarro para a viagem de regresso. Em amena cavaqueira lá passamos por alguns momentos hilariantes que nos convenceram que era hora de partirmos. Uma vez mais os olhos do Sr. Xisto fitavam o alcatrão e contava mentalmente os pés que o pisavam.
  • Após um solavanco inicial o autocarro coloca os motores em funcionamento e avança pela serra fora até perdermos de vista as casa que se amontoam sobre a encosta. Já lá no alto recordo Miguel Torga, também este espantado pela serra do Açor e pela sua brandura e grandeza.
  • Ficaram na serra as minhas pegadas e o meu suor. Mas, trouxe comigo as imagens na minha memória as cores e os cheiros, o simples e o belo e a esperança de lá voltar um dia e quem sabe se o Sr. Xisto ainda me possa contar outras estoiras (como dia o Sr. Xisto) que naquele dia a memória o não lembrou.
  • Adorei Piodão, adorei a Foz d’égua, adorei o dia de sol que esteve e mais ainda posso agora falar de Piodão.
  • Até uma Próxima caminhada, se não poder ser com os mesmos, que sejam tão bons como eles.
  • Agostinho Santos (Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.)
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