galhardosRota dos Galhardos 

  • A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar. - Eduardo Galeano -
  • A manhã estava invulgarmente fria e triste. Estávamos em pleno inverno, mas no ar pairava os cheiros da primavera, apesar de ser um daqueles dias que convida ao conforto do lar e ao som do crepitar da lareira. Enchemos as mochilas e partimos para mais uma aventura por terras lusas.
  • A expectativa era muita, não só pelo local emblemático, como pela concretização de um trilho que em tempos ficou cancelado dos nossos planos.
  • Uma centena de almas com boa vontade de caminhar, partiram em busca do desconhecido e de um contacto direto com a natureza aliado ao estímulo do saber.
  • Após algumas horas no autocarro, chegamos ao nosso destino - na bonita povoação de Folgosinho - um pequeno lugar inserido no Parque Natural da Serra da Estrela.
  • Ali, deu-se o primeiro encontro com o ar fresco da montanha. Neste momento, estávamos rodeados por um ambiente bucólico que se estende por uma grande área. A paisagem é como um livro que se abre e, no folhear das páginas, encontramos um mundo diferente e novo ao mesmo tempo.
  • Adensava-se o mistério pelo desconhecido e não tardamos a deixarmo-nos engolir pela aldeia. Embrenhamo-nos nas ruas, longe da confusão do dia-a-dia, mas mais próximos do silêncio, sedentos de conhecê-la, prontos a conquista-la com o olhar, metro a metro. Os espaços livres deixados pelo casario, deram origem a ruas apertadas que serpenteiam de uma forma natural, libertando no ar cheiros, sons e imagens.
  • Em poucos minutos atravessamos um labirinto de pequenos becos que parecem não levar a lado nenhum, que nos engolem para nos regurgitar num espaço amplo que nos levaria ao início do nosso trilho.
  • Iniciamos a nossa caminhada, agrilhoados às mochilas que pendiam dos nossos ombros. A medida que nos vamos afastando do aglomerado urbano, a luz cresce em redor e ao longe o olhar perde-se nas nuvens que lambem os cumes e depositavam um líquido insípido sobre o arvoredo criando uma imagem confusa em tons grisalhos
  • Vamos ao encontro de um caminho velho, com o empedrado já degradado que estabelece a ligação entre a povoação e a serra. Era daqueles caminhos como já não se fazem. Caminhos esses que a própria natureza se encarregou de decorar com as mais variadas plantas e ervas.
  • Este é o nosso primeiro teste de resistência. Umas subidas que deixa para trás Folgosinho e as ultimas casas evaporam-se na paisagem e com toda a sua simplicidade o caminho espreguiça-se pela encosta. O olhar internou-se num mundo diferente do habitual e já o silêncio percorria cada espaço e os movimentos amorteciam-se no chão pedregoso.
  • A paisagem transforma-se. As plantas espontâneas que decoram a encosta são mais que muitas, e espalham um bonito colorido em tons verdes.
  • Chegamos a a primeira das quatro casas de abrigo mandadas construir por João de Vasconcelos nos anos quarenta e que serviam de refúgio às intempéries a quem vinha ou ia para a serra, vinha com rebanhos e espigas de centeio, carregadas em carros puxados por bois. Aqui fizemos uma paragem para recuperarmos as forças e reagrupar o extenso grupo. Ao longe tinha ares de cabana miserável roída pelo tempo; um olhar mais de perto apenas corroborava isso. Sobre a habitação havia crescido os líquenes ou vice-versa. A porta dir-se-ia ser o objeto mais fácil de descrever — nomeadamente por não existir. Uma divisão central e única. De uma janela moribunda se via o interior da casa. O seu estado de degradação deixa tristeza a quem passa.
  • Aqui a memória é apoquentada pela dura vida de pastor. Esse ser que muitas vezes nos passa ao lado da nossa vida citadina. Hoje já quase não há pastores e os que hoje o são tem uma vida muito diferente do pastoreio dos tempos idos. No passado era raro encontrar uma casa que não tivesse, de alguma forma, uma ligação de proximidade com a cultura pastoril. Cabia a cada varão destas famílias dedicar-se à profissão de pastor, ou por um período determinado de anos – geralmente até ao serviço militar – ou como atividade permanente. Deste modo ser pastor tratava-se, essencialmente, de uma herança familiar. Desde pequenos que se habituavam a lidar com o gado: os pais, cedo ensinavam os filhos a conduzir o rebanho.
  • Deste modo, iniciavam muito cedo as respetivas aprendizagens do maneio do rebanho, adquirindo com astúcia todas as técnicas e saber-fazer próprios que o convívio milenar das gerações e o passar do tempo lhes ia revelando. O modo de conduzir o rebanho, usando para o efeito brados, praguejares e assobios que se tornam intraduzíveis, mas que são eficazes na tarefa de condução do rebanho; a utilização do cajado; a forma de atirar pedras como aviso às ovelhas sem no entanto as ferir e o conhecimento pormenorizado destas, são elementos característicos e basilares que definem a capacidade de ser pastor.
  • Nos dias de hoje o pastor vive ao ritmo das ordenhas, variando os seus horários de pastoreio ao longo do ano consoante o tipo de alimento existente e o clima. Enquanto no inverno apenas sai com o rebanho de manhã e regressa ao entardecer, no Vvrão, normalmente, sai duas vezes. O seu dia de trabalho durante os meses de verão principia antes do nascer do sol, embora não ordenhando durante este período, o seu trabalho inicia-se entre as 6 e as 7 horas da manhã. Os animais saem do redil ao som dos gritos e assobios do pastor e dos latidos dos seus cães na direção dos melhores pastos.
  •  As condições meteorológicas condicionam a atividade, principalmente nestas paragens, podendo haver uma mudança repentina no estado do tempo, daí estas casas abrigo terem sido muito importantes, para atividade pastoril. Nada há a fazer quanto a isso e deixamos para trás o abrigo nº 1 e avançamos encosta acima. Para trás ficam as pegadas que em alguns lugares ficam no solo macio, para nos embrenharmos novamente nas frias pedras da calçada.
  • O trilho em si é igual a outros que já trilhamos ou que conhecemos. Uma paisagem dinâmica reflexo da conjugação de vários fatores ambientais em presença, mas também da harmonia entre as atividades humanas e a natureza ao longo de gerações. Em termos paisagísticos convêm realçar a diversidade e da importância dos elementos arbóreos na constituição desta paisagem caracterizada por pastagens naturais, bosques de cedros ou de carvalhos alternados por diversas variedades de pinheiros.
  • Este trilho insere-se numa topografia de vale e montanha. As rochas moldam a paisagem, e de quando em quando há uma pincelada de verde que quebra as curvas cinzentas. Agora o trilho sobe e iremos enfrentar um caminho lento que se faz passo a passo.
  • A calçada na qual os nossos pés pisam termina e deixamos para trás aquela que dá nome ao trilho: calçada romana, com a designação de Galhardos. O Galhardo, nome de pequeno demónio que, segundo a lenda, fizeram a calçada numa noite, a qual devido à sua inclinação, só poderia ser obra sua. Na realidade trata-se de uma calçada construída durante a ocupação romana. Estes trechos de calçada faziam possivelmente parte da Via Romana que atravessava a Serra da Estrela.
  • Chegamos a 2ª casa abrigo. Esta com melhor aspeto e já convidava a entrar. A manhã tinha chegado ao seu termo e os estômagos mais sensíveis já reclamavam. Era chegada a hora de uma pausa para repormos as energias. Estrategicamente colocados ao acaso, conforme nos desse jeito ou de maneira a que pudéssemos pôr o olho num farnel mais composto. Deixamo-nos lambujar com uma pequena refeição para assim, iludirmos o estômago.
  • Terminado a pequena refeição, retomamos novamente a nossa caminhada. Passamos agora por um pequeno bosque de bétulas que nos acompanhou até a um lugar chamado de Portela de Folgosinho.
  • Bétula (Betula) é o nome de um género de árvores da família Betulaceae, (próxima da dos carvalhos, Fagaceae), são características de climas temperados do hemisfério norte. bétula-branca ou vidoeiro-branco , carvalhos e castanheiros são as mais conhecidas “árvores bombeiras”. Têm folhagem abundante, o que mantém o ambiente húmido e abrigado do vento durante o verão, pois estão verdes, por isso ardem com mais dificuldade e, por outro lado, produzem uma folhada que ao acumular-se no solo é pouco inflamável e se decompõe com facilidade.
  • Na Portela de Folgosinho encontramos indicações para vários destinos. Havendo a realçar para o nosso caso, o encontro do PR rota dos Galhardos com o GR 22 Aldeias históricas. Aqui tiramos a foto de família e um sem número de fotos. Foto para aqui, foto para ali, tentando reter o máximo de informação possível, para mais tarde recordar. Após a separação das vozes graves para um lado e agudas para outro, teve início o tão conhecido espetáculo. Para os iniciados foi uma primeira experiencia e, para os restantes, mais uma atuação. Os sorrisos regressaram às faces pálidas. Recuperamos a caminhada e, com hinos ao criador, partimos felizes e contentes, lembrando este momento para o resto das nossas vidas.
  • Seguimos agora o GR22 no sentido de Linhares. O olhar era majestoso! Ao longe, o maciço central da serra da estrela, resplandecia sob os raios solares e fundia-se no pálido azul do céu. Pudemos apreciar uma panorâmica de elevada beleza. A paisagem está cicatrizada por um largo estradão que, rapidamente, nos colocam em qualquer ponto, útil para um deslocamento de grandes veículos e até bicicletas que podem tirar a paz à paisagem... Gradualmente, descemos por esta estrada florestal que, verdadeiramente, constitui e se assume como uma via panorâmica. Lembro-me de ouvir alguém dizer que escutava o silêncio. Parece irónico, mas é verdade. O silêncio também tem som e só quem realmente o quiser ouvir é que pode ter esse privilégio. Conversar com a natureza, ouvi-la e respeitá-la são privilégios de poucos. E essas pessoas merecem respeito. Depois de trilharmos por entre afloramentos graníticos e árvores secas, passamos junto a um pequeno penhasco que o tempo moldou, dando-lhe a aparência da cabeça de um Faraó. Não deixa de ser uma as formas antropomórficas interessantes, um pouco mais a frente fica o marco geodésico dos Galhardos a (1323 metros). A paisagem é soberba, valendo sempre a pena fazer pequenas paragens, para melhor a apreciar.
  • Entramos num trecho do caminho que para mim a parte mais bonita. Os pinheiros misturados com os vidoeiros formam uma massa arbórea multicolor magnífica e há marcas deixadas pelas forças da natureza na sua passagem. As árvores vestidas por musgos que choram e tomam a forma esguia do tronco, num rendilhado de fios esverdeados. Uns mais vaidosos do que os outros, ornamentam-se de pequenos cogumelos como se fossem joias. Toda a envolvente ganha cor e forma, condimentada pelos aromas das plantas existentes e refrescada pela brisa fresca da serra. Este pequeno troço do trilho é realmente fabuloso.
  • Deixamos para trás o troço misto do GR com o PR e entramos numa paisagem de pastos de montanha, uma delícia de caminho. Iniciámos a descida até aos limites de Folgosinho, fazendo-o pela Calçada Romana da Serra de Baixo” também designada por “Pé da Serra”, mais um pequeno troço da calçada romana que atravessava a serra. A descida proporciona-nos uma paisagem soberba, valendo sempre a pena pequenas paragens, para melhor apreciar.
  • Cruzamos a 3 casa abrigo, também esta muito degradada. Ficava ligeiramente afastada do caminho.
  • Só nos resta caminhar, passo a passo, um dos atos mais naturais do Homem. A conversa surge espontânea, a paisagem apresenta-se magnifica. Não há espaço para qualquer tipo de ansiedade ou depressão, desfruta-se simplesmente.
  • Daqui o olhar cai sobre Folgosinho, altiva sobre a encosta. O seu castelo ou o que podia ter sido, vigia os nossos passos e já se adivinhava o final de percurso.
  • Com alguma frequência, olhamos a vegetação como algo estático, quase imutável e insensível às contínuas alterações do meio. Está muito longe da realidade. O Homem tem sido o principal agente desestabilizador e responsável pelas ações agressivas neste ecossistema. Estas intervenções desestabilizaram, total ou parcialmente, as condições ambientais existentes. Como consequência, toda a comunidade acabou por ser eliminada e substituída por outra, que pouco ou nada tem em comum com a anterior. As árvores morrem de pé, porque o homem assim quis… Toda a sua biodiversidade constitui um património natural, biológico e genético de um valor incalculável que deve ser preservado e transmitido às gerações vindouras. Os caminhos que não eram intensamente transitados desapareciam sob a exuberância da natureza e as ervas ameaçavam apoderar-se dos campos e caminhos.
  • Já no fundo da encosta, onde as sombras alongavam-se elásticas sobre o chão pedregoso, cruzamos a Ribeira do Freixo e novamente as poucas habitações que parecem ser moinhos, apresentam um aspeto degradado e aí a calçada termina, fazendo-se o resto do percurso, por um caminho de terra batido até ao lugar designado por Moinhos do Forno. Estamos no reino dos carvalhos e castanheiros. Árvores supremas e de grande porte prestam homenagem ao caminheiro oferecendo a sua sombra. Entre a sombra de castanheiros e carvalhos, podemos olhar ainda os campos sempre verdes e, de quando em quando, o trabalho árduo de homens e mulheres, que souberam com mestria buscar nas encostas um punhado de solo fértil para o pão de cada dia.
  • Por fim, é a chegada à Vila e depois de se reporem energias numa qualquer simpática tasquinha, para “esmoer”, vale sempre a pena uma última visita pelo povoado, que alguns acreditam ter sido o berço de Viriato. Perde-se na memória dos tempos a origem deste povoado, sabendo-se contudo que Folgosinho já era conhecido no reinado do nosso primeiro Rei, aquando da atribuição do Foral a Linhares em 1169. Mas seria o seu filho o Rei D. Sancho I que lhe atribui foral em 1187.
  • Com o passar dos anos o corte sistemático e o pastoreio intensivo desnudaram as serra. Como consequência, a falta de pastos levou a que muitos pastores procurassem outros destinos para sobreviver, dando-se início à emigração. A desertificação humana da Serra tem levado ao abandono das práticas tradicionais, diminuindo consequentemente a genuinidade do produto queijo da Serra da Estrela.
  • O drama do despovoamento humano encontra-se fielmente retratado no filme Ainda há Pastores (2006) de Jorge Pelicano.
  • Na povoação, cada qual decidiu aproveitar a hora de paragem da forma que melhor entendeu.
  • Por isso aceitamos o convite para percorrer o trilho, deixando de ser importante a dureza do caminho. Não importa o peso da mochila, sinto-me leve. Restará sempre um peso, talvez os dos meus pecados…, mas nada impede a sensação de liberdade.
  • Se há lugares que nos prendem e nos fazem voltar este é um deles.

Agostinho Santos

 

 

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